Durante três dias a Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, foi ocupada por milhares de moradores de favelas. E eles vieram de muitos lugares. Do Chapéu Mangueira, Rocinha, Alemão, Complexo da Maré, Complexo da Penha, Senador Camará, Vila Kennedy, Chapadão, Cachoeiras de Macacu, Cubango…. Os espaços do gigantesco equipamento da prefeitura foram literalmente tomados pela favela. Mas ao contrário do que estes moradores estão acostumados, quando a polícia entra em suas comunidades com blindados e fuzis, esta foi uma ocupação do bem. Em vez de armas, os moradores levaram muita paz e alegria. Uma aula de cidadania e diversidade para explorar a edição carioca do Expo Favela Innovation.
Promovida pela Favela Holding, o mote do evento é mostrar que em vez de carência, favela é potência. A idealização é do Celso Athayde um dos fundadores da CUFA e CEO da Favela Holding. A Expo Favela tem uma programação itinerante e vai rodar várias cidades pelo país. Começou por São Paulo no ano passado e chegou ao Rio depois de rodar mais quatro cidades. Já é considerada a maior feira da América Latina de empreendedores do 4° setor.
Foram três dias de palestras que juntaram dois mundos: o das comunidades e os do asfalto. Entre os palestrantes, pelo lado do asfalto havia artistas, jornalistas, autores, políticos, pesquisadores. E pela favela as principais lideranças da Cufa, Afroreggae, Voz das Comunidades, Notícia Preta. Teve de tudo um pouco. Palestras, conferências, feira de livros, games, espaços para crianças e no fim de cada dia shows com samba e pagode e diversão, afinal ninguém é de ferro.
Essa potência da favela foi traduzida em números de apresentada pelo presidente do Instituto Locomotiva e fundador do DataFavela, Renato Meirelles.
De acordo com a pesquisa, o Brasil tem mais de 13 mil comunidades, onde vivem 17,9 milhões de habitantes. Se fosse um país, a favela teria uma população semelhante à do Chile e maior do que países como a Holanda, Bélgica ou Bolívia. Um mercado consumidor de R$ 31 bi. No Rio de Janeiro, um a cada dez habitantes vive numa favela. E apesar de viverem num balneário, 53% nunca foram à praia. Segurança (31%) e Respeito (15%) estão entre as suas prioridades.
Nas salas de conferência, painéis discutiam soluções para o povo da favela. E com a experiência de quem transita nos dois mundos. A jornalista Flávia Oliveira, mulher preta, periférica do Irajá, e hoje uma das comunicadoras mais respeitadas do Brasil falou sobre sua experiência de vida. “Fiz comunicação, tenho algum conhecimento de Economia. Se eu não usasse isso pra quem precisa, estaria fazendo mal o meu papel”. Ela defende que o empreendedorismo periférico tem que ser tratado da mesma forma que as incubadoras de startups, que recebem milhões de reais para verem seus projetos alavancados.
Flávia dividiu o painel com Silvio de Almeida, ministro dos Direitos Humanos. “Ser intelectual só é problema quando você é preto”. “Falar de empreendedorismo é falar sobre o quê, meu camarada? De futuro. Falar de futuro, da capacidade das pessoas de projetar um futuro, de pensar em uma vida nova, uma vida melhor para a sua própria família”.
Thais Bernardes, editora-chefe do Notícia Preta _ um portal de jornalismo antirracista com mais de 400 mil seguidores no Instagram _ entrevistou Pedro Bial da TV Globo. Muito a vontade e com um domínio de palco de veteranos, Thais conversou sobre os momentos marcantes da carreira de Bial, desde a queda da União Soviética até a apresentação do Big Brother. E também falou um pouco sobre o Notícia Preta. “Dos nossos leitores 42% são de pessoas brancas. Não somos um portal apenas para os negros. E fazemos jornalismo factual”. Filha de pais adotivos Thais é um exemplo de como os jovens da periferia podem ir longe quando ganham as oportunidades. Ela foi aluna cotista da Uerj, ganhou uma bolsa de estudos, passou quase dez anos em Paris, onde começou sua vida profissional como repórter no principal canal público e segundo mais visto na França. Voltou ao Brasil depois que o pai morreu e criou o portal Notícia Preta, hoje um sucesso entre as mídias de favela.
Fora das salas de conferência, nos espaços de convivência da Cidade das Artes, era possível enxergar como funciona a potência da favela. Mini estandes foram instalados para que os empreendedores pudessem mostrar e falar um pouco de seus projetos. E lembrando o comentário da Flávia Oliveira no inicio deste texto sobre o empreendedorismo periférico, ali estava a prova de como ele merece ser tratado como startup. Renato Meirelles, que apresentou a pesquisa do Data Favela reforça.
“Quem inventou a startup foi a favela. Porque na favela se você não inova não sobrevive. Inovar na favela é construir pontes”.
E para resolver as dores de quem vive onde falta tudo. As soluções dos moradores da favela têm inovação pra todo lado. Tem projeto criativo de agência de emprego, assistentes virtuais, educação a distância, oficinas de desenho, ensino de novos ofícios, transporte, delivery, energia solar, moda, comunicação.
Exemplos como o do casal Rogério Márcio e Queli Cristina que quando se viu sem emprego e um filho autista pra sustentar resolveu fazer faxina em casas de família. Diante da dificuldade de conseguir encontrar quem precisasse dos serviços nasceu a plataforma Eu Facilito. Eles começaram a cadastrar de um lado os interessados em trabalhar com faxina e do outro donos de residências ou empresas que precisam do serviço. Hoje eles já têm mais de 20 pessoas cadastradas além de casas em vários bairros do Rio.
Já Rafael dos Santos, o Fael, não foi vencido pela falta de um computador para dar vida aos seus desenhos digitais. Com o uso de um aplicativo de desenho baixado no seu celular, ele usou o próprio dedo como pincel e faz pinturas que retratam a realidade das favelas. Ele batiza seu movimento de crialismo da arte. “No futuro, assim como teve o renascentismo, esse movimento vai ser o crialismo”, profetiza. Fael é de Senador Camará e quer ensinar sua técnica para as crianças da favela. “Fael, Cria, Arte Vive é o meu projeto”, diz.
A May Ramasine perdeu tudo quando era criança e foi morar com a mãe no Morro do Cubango, em Niterói. Acostumada a todo ano ter cadernos novos com capas bonitas, a mãe, agora sem dinheiro, criava desenhos usando restos de maquiagem para fazer a decoração das capas dos cadernos das filhas. E agora mais velha, May criou o projeto Pele na Tela , que usa de restos de batom a pó de arroz para fazer quadros que não fariam feio em nenhuma galeria de arte na Zona Sul do Rio. E além de vender, May está fazendo oficinas para crianças aprenderem a técnico e decorarem seus próprios cadernos. “Toda essa maquiagem seria descartada. Hoje elas viram arte e ainda dou o destino correto para reciclagem”. O que iria para o lixo, hoje é arte e sustento para ela.
Quem vive em favela sabe que o moto taxi hoje é o principal meio de transporte. Mas se você está fora da favela e precisa de um Ubertaxi tem dificuldade em achar quem aceite a corrida. Foi a partir daí que os colegas de trabalho Erinaldo Junior e Gabriel Paiva criaram o Bimp. Um aplicativo para mototaxistas que atendem nas favelas. Já estão com mais de 400 cadastrados. “E a gente faz atendimento para delivery também. A pessoa compra dentro da favela e recebe de um mototaxista que também mora na comunidade”.
Agora vamos imaginar se metade destes projetos forem implantados? A favela precisa de muita coisa a ser feita, mas no que depender de quem vive lá será cada dia um lugar melhor de se viver. “Eu costumo dizer que a favela, ela não é carência, ela sim é potência. E a favela, ela não venceu, ela segue vencendo. Mano, eu não quero chorar. Mas só de eu ter chegado aqui, já é uma vitória”, comemora o empreendedor Antony Bené. E que siga vencendo!!
Marcelo Moreira, sócio-diretor da DiversaCom